COMO RECONHECER O DESVIO DE FUNÇÃO


O desvio de função se caracteriza pela designação do servidor para execução de atividades que não se encontram no feixe de atribuições de seu cargo, quer por não guardarem relação com a natureza e complexidade do cargo, quer por estarem dentro do feixe de atribuições de outro cargo.

Da Natureza e Complexidade do Cargo
O art. 37, II da Constituição Federal determina que o concurso público deve respeitar a natureza e a complexidade do cargo ou emprego. Se o concurso público deve respeitar a natureza e a complexidade do cargo, muito mais as próprias atribuições do cargo.
À luz da Constituição Federal, portanto, o desvio de função se caracteriza tanto pelas funções exercidas pelo servidor ou empregado público não condizerem com a natureza do cargo, quanto não serem de proporcional complexidade.
Exemplo claro de desvio de função é quando, ao servidor ocupante do cargo de advogado, é determinado que administre a agenda de seu superior hierárquico. Resta evidente que, a profissão de advogado – regulamentada pela lei 8906/94 – não abarca a função de secretaria. Do mesmo modo, exigir que um biólogo – cuja profissão é também regulamentada – exerça funções administrativas, como compilação de dados financeiros, caracteriza desvio de função.
Por outro lado, também é desvio de função exigir que um técnico administrativo limpe banheiros, ou que uma servente dirija veículos. Além da natureza compatível, as funções devem ter complexidade compatível com o cargo, não sendo possível a designação de atividades mais complexas que o cargo – ainda que o servidor seja capaz – e nem menos complexas – o que ocorre, muitas vezes, como forma de assédio moral.
O que se verifica é que a natureza do cargo é o primeiro norte a determinar as suas respectivas funções e, via de consequência, apontar as atribuições que estão claramente fora deste feixe de funções.

Das Atribuições Determinadas por Ato Normativo
Por vezes, entretanto, a linha que separa as funções naturais do cargo de outras, nem sempre é tão nítida.
Como exemplo, podemos citar as funções de um hipotético cargo de Auxiliar Administrativo. Se é evidente que a ele não compete a elaboração de pareceres contábeis, pode não ser tão evidente se lhe cabe tanto juntar peças em um processo quanto atender ao público.
Para essas zonas mais cinzentas é que se faz útil a descrição das atribuições dos cargos por ato normativo, preferencialmente por lei.
Quando a lei ou ato infralegal descreve as atribuições de cada cargo se pode mais facilmente identificar quando iniciam as atribuições de um cargo e se encerram as de outro. Pode-se ver, por exemplo, se o atendimento ao público é atribuição do Assistente Administrativo, enquanto a organização de processos em capas específicas é atribuição do Auxiliar Administrativo.
Naturalmente, quando a lei cria cargos, deve haver motivação de interesse público específica para tanto, de modo que, se a estrutura administrativa não comporta um cargo de Assistente Administrativo e outro de Auxiliar Administrativo, como no exemplo, nada impede que, em um mesmo cargo, se abarquem funções adequadas ao cargo, quer sob o ponto de vista de sua natureza, quer de sua complexidade.
É dizer, se determinadas funções são de natureza e complexidade compatíveis com o cargo “A”, mas descritas como atribuições do cargo ou função “B”, seu exercício por servidor ocupante do cargo “A” configura o efetivo desvio de função. Por outro lado, se estas funções não estão descritas em nenhum outro cargo, nada impede que passem a ser do cargo “A”.
Não vale, obviamente, criar-se funções e cargos apenas para justificar pagamento de adicionais que remuneram atribuições perfeitamente concernentes a cargos já existentes.
A Administração Pública, portanto, ao elaborar sua estrutura administrativa, deve levar em conta os princípios elencados no art. 37, em especial, o da legalidade, da moralidade e da eficiência, a fim de fazer sempre mais, por menos, em respeito ao suado dinheiro do contribuinte.

Desse modo, primeiramente, é preciso reconhecer se o desvio de função é real, ou se as atribuições de certo cargo podem ser aumentadas e diminuídas por ato legal ou mesmo infralegal, na medida em que não alteram a natureza e complexidade do cargo.
Ou seja, se as atividades exercidas pelo servidor, não contempladas em eventual plano de carreira, puderem ser a ele atribuídas, por não se afastarem de sua natureza e complexidade, ou não estarem afetas a outro cargo existente e ocupado, a Administração Pública assim deve fazer, sem qualquer acréscimo pecuniário, quer por aumento de vencimento, quer por instituição de verba específica, em obediência aos princípios da moralidade, legalidade e eficiência.
Aliás, é bom que se diga, a única justificativa para um aumento no vencimento ou subsídio do servidor seria, efetivamente, se tais atribuições fossem de natureza e complexidade compatíveis com o cargo, visto que se não fossem, não podem ser exercidas pelo servidor ocupante do referido cargo, não podendo, via de consequência, haver qualquer justificativa para aumento de vencimento. E se essas atribuições são de natureza e complexidade compatíveis com o cargo já existente, o aumento de vencimento não se justifica, salvo por outra razão, como o aumento da carga horária, por exemplo.
Se, de outro lado, as atribuições exercidas pelo servidor não respeitarem a natureza e complexidade do cargo de origem, não há qualquer razão fática para haver aumento de vencimento. O que pode haver, entretanto, é a previsão legal de cargo ou função específica, com sua respectiva remuneração e feixe de atribuições.

Das Atribuições Referirem-se a Outro Cargo
Se, contudo, as atividades exercidas por dado servidor são previstas em atos normativos como atribuições de outro cargo ou função, o servidor está, efetivamente, em desvio de função, situação que é, sabidamente, ilegal. Esse outro cargo, contudo, deve estar ocupado e em pleno exercício, caso contrário, sua existência legal se traduz numa desnecessidade no mundo dos fatos, devendo suas funções serem absorvidas por outro cargo existente.
O reconhecimento do desvio de função implica, ato contínuo, no afastamento do servidor dessas atividades que são atribuições de outro cargo.
De outro lado, porquanto as atividades foram realmente exercidas, o servidor em desvio de função faz jus à remuneração correspondente (qual seja, a prevista na função ou cargo específico para tanto), sob pena de enriquecimento ilícito da Administração Pública. Inteligência da súmula 378 do STJ[1].
Isso, naturalmente, supondo-se, em tese, que este outro cargo ou função, bem como sua respectiva remuneração, tenha previsão legal preexistente à situação que se supõe de desvio de função, único modo de caracterizá-la nestas circunstâncias.

Da Reserva Legal
É cediço que qualquer verba paga a servidor deve ser prevista em lei stricto sensu (art. 37, X Constituição Federal). Nisto se inclui tanto aumento de vencimentos ou de subsídios, quanto instituições de verbas de quaisquer naturezas (gratificações, adicionais, auxílios etc), bem como cargos, funções etc.
Não é possível o pagamento de um tostão a servidor, sem que lei aprovada pelo Legislativo competente, que tenha obedecido ao devido processo legislativo constitucional, assim o preveja.
A lei, contudo, como visto, deve ter em sua motivação, não apenas a solução de um problema pontual, o agrado a um servidor ou a alegria que a medida geraria entre os por ela beneficiados. Uma lei que crie verba, cargo ou função remunerada está impondo mais um peso ao contribuinte, de modo que o legislador deve ser exageradamente criterioso e absolutamente convicto de que, apesar do aumento de despesa, a mesma trará efetivos benefícios ao serviço público e não apenas ao servidor.

Diante da exigência de previsão legal, não é possível o pagamento de uma verba nova retroativa à data em que não havia lei, salvo se a lei assim o prever, e o orçamento público o permitir, ocasião em que, o legislador deve obedecer, mais uma vez, aos princípios da moralidade e impessoalidade, estabelecendo critérios e limites objetivos para tal retroação, como, por exemplo, o contido no Decreto 20910/32.


[1]Reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes”.

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